Um novo olhar sobre a fotografia

Alunos da turma de 2012 construíram suas próprias câmeras escuras
(Foto: Renan Otto Fontes)


O que é preciso para ser um bom fotógrafo? Ingressar num curso caro, comprar uma câmera importada e fazer muitos cliques? Não. É preciso muito mais do que dinheiro e tempo para documentar uma realidade por meio da fotografia. É preciso aliar técnica e percepção crítica. E é isso o que ensina há oito anos o Programa Imagens do Povo, instalado dentro do complexo de favelas da Maré.

Criado pelo fotógrafo João Roberto Ripper, o Imagens do Povo é parte do programa sócio-pedagógico do Observatório de Favelas e tem como missão a “documentação, pesquisa, formação e inserção de fotógrafos populares no mercado de trabalho”, como anuncia em seu site. Para os alunos, isso significa uma oportunidade de entrar em contato com a fotografia e, mais do que isso, ter assegurado um espaço de trabalho ao se formarem.

Isso porque o Programa Imagens do Povo é constituído por diversos projetos, entre eles a Escola de Fotógrafos Populares, o Banco de Imagens, Agência Escola – onde os fotógrafos trabalham em pautas encomendadas –, o Curso de Formação em Educadores da Fotografia, as Oficinas de Fotografia Artesanal (pinhole) e a Galeria 535. “Ou seja, é uma escola de fotógrafos seguida por um banco de imagens e uma agência. Todos os fotógrafos que se formam aqui assinam um contrato para fazer fotos para agência e, assim, continuar trabalhando”, explica Léo Lima, fotógrafo formado pela escola em 2009 e atual monitor das Oficinas de Pinhole.

O conteúdo programático da Escola de Fotógrafos Populares é de dar inveja em muita universidade federal por aí. Entre aulas práticas e expositivas, os alunos participam de discussões com temáticas como direitos humanos, análise crítica da mídia e teoria das representações sociais. O suporte pedagógico fica a cargo de Dante Gastaldoni, fotógrafo profissional e professor da UFF e da UFRJ. Já as aulas são ministradas por dois professores permanentes, Fábio Caffé e Rovena Rosa – ambos formados pela própria escola –, auxiliados por palestrantes convidados. Os encontros acontecem às terças, quintas e sextas, das 8h às 12h30 e aos sábados, são programadas saídas fotográficas e visitas a exposições. O curso dura em média 10 meses, com início em março.

Foto: Naiara Fouraux
Durante as saídas, os alunos tem a oportunidade de colocar em prática tudo o que aprenderam em sala e ainda podem usar as câmeras digitais profissionais da escola, adquiridas em 2006 graças ao apoio da UNICEF. Este ano, a turma já participou de aulas práticas em diversos pontos da cidade, como o Piscinão de Ramos, a Quinta da Boa Vista e a feira da Rua Teixeira Ribeiro, uma grande feira popular realizada em frente ao Observatório de Favelas na Maré. Em uma dessas aulas na feira, no dia 19 de maio, um grupo de aproximadamente 30 pessoas se espalhou entre as barracas com câmeras em punho e à procura de novos ângulos e novos personagens. Atrás, o professor Fábio Caffé ia orientando entusiasmado: “Galera, não chega direto tirando foto. Se apresenta primeiro, pergunta se pode fotografar. O legal é trocar uma ideia com as pessoas, conhecer um pouquinho de cada história”.

Para muitos alunos – e também para os fotógrafos já formados – as câmeras da escola são a forma que encontraram de documentar a sua própria realidade, essa realidade que a grande mídia tanto insiste em deixar de lado. Esse é o caso de Léo Lima, que fotografa a comunidade do Jacarezinho onde mora e documenta o processo de remoção de casas nas favelas do Rio. Ele conta que nunca gostou de fotografia, mas quando entrou na Escola de Fotógrafos ficou apaixonado: “Eu percebi que também podia falar do lugar onde eu moro, que a outra imagem podia ser mostrada”. Mas apesar de já ter fotos integrando diversas exposições coletivas, até mesmo em Nova York, e uma exposição individual inaugurada em maio na Galeria 535, ele ainda encontra algumas dificuldades. “Até hoje eu não tenho equipamento próprio. Toda vez que eu saio para fotografar eu tenho que agendar aqui no Observatório com antecedência para pegar a câmera emprestada”, conta Léo.

Também formada pela Escola, na turma de 2009, e atualmente trabalhando como indexadora do banco de imagens, Monara Barreto é outro exemplo. Ela costuma fotografar no Morro do Alemão para mostrar ao mundo toda a beleza que vê por lá. “Gosto de documentar nas favelas a peculiaridade e a essência de cada morador e mostrar, através da minha fotografia, o grande valor e a beleza que eles têm. Tento ajudar na luta pela valorização da comunidade local e na luta contra estereótipos estabelecidos pelas mídias hegemônicas”, explica a fotógrafa.

Mas nem só de moradores da Maré é constituída a escola. Sabendo da qualidade do curso, alguns alunos vêm de fora. A estudante de desenho Naiara Fouraux, moradora de Santa Rosa, Niterói, é uma das exceções. Ela ficou sabendo do curso através de um amigo e fez a inscrição imediatamente: “Eu tive certeza que era isso que eu precisava para ser mais feliz, por realização pessoal e profissional”. E em nenhum momento ela se arrepende: “O curso foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. É maravilhoso estar lá, é um curso onde além de fotografia, você aprende questões da vida, como respeitar ao próximo, entender a necessidade do outro, se expressar melhor, abrir os olhos para a realidade e para o que realmente importa”.

Para fazer parte desse restrito grupo de alunos, é necessário passar por um processo seletivo muito concorrido que acontece a cada início de ano. A seleção inclui uma pequena entrevista e dinâmicas de grupo. E a prioridade é sempre para moradores de favelas, claro. “O fato de [o curso] estar em uma favela e ser direcionado, primeiramente, a moradores de comunidades é muito importante, pois gera visões contra hegemônicas, que abalam os olhares dominantes: é a favela vista por ela mesma”, explica Gustavo Cunha, que chegou ao curso através da “apresentação apaixonada” do Prof. Dante Gastaldoni em uma aula na UFF. Por ser de fora, ele enxerga outras vantagens em ser aluno da Escola de Fotógrafos Populares: “Outro ponto positivo do curso é que ele agrega pessoas de diferentes lugares da cidade, que não apenas de favelas. Isso permite muitas trocas culturais - que muitas vezes não aconteceriam em uma cidade supostamente partida”, conclui.

O Programa Imagens do Povo é complementado pelas Oficinas de Pinhole, voltadas para crianças e adolescentes de comunidades populares entre 9 e 15 anos. Na oficina, as crianças tem o primeiro contato com a fotografia artesanal e aprendem a construir suas próprias câmeras com materiais alternativos, como latas de alumínio ou caixas de papelão. Além disso, elas também têm a oportunidade de conhecer um pouquinho sobre mais sobre fotografia. As oficinas acontecem às segundas e quartas em dois turnos, manhã e tarde, e contam com o apoio do Criança Esperança.

Na aula realizada no dia 4 de junho, o monitor Léo Lima, com a ajuda do professor Fagner França, contou a história da primeira fotografia feita por Joseph Niépce em 1826 e a partir dela, instigou os alunos a saírem para fotografar nos arredores. Mas além de fotografar durante as aulas, eles tem levado suas pinholes para casa. A ideia é que toda semana as crianças fotografem o seu cotidiano e no final do semestre, tenham um projeto individual para mostrar sobre a sua casa.

Apesar de toda a dificuldade encontrada pelo programa, como por exemplo a necessidade de correr atrás de patrocínio todos os anos, o Imagens do Povo está mostrando que tem força e capacidade para se tornar um grande núcleo do produção fotográfica no país. “O financiamento é independente, por isso a importância de fazer uma escola bem feita a cada ano”, explica Léo Lima. Não é para menos que ainda em 2004, ano de sua criação, o projeto recebeu o Prêmio Cultura Nota 10, oferecido pela Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e em 2007, o Prêmio Faz Diferença, do jornal O Globo. Em 2010, tornou-se Ponto de Cultura, passando a ser apoiado financeira e institucionalmente pelo Ministério da Cultura. Em junho de 2012, conseguiu lançar seu primeiro livro, juntando o registro do cotidiano de espaços populares feito por diversos fotógrafos do programa.

Muito mais do que apenas uma escola e uma agência fotográfica, o Programa Imagens do Povo é um coletivo. Um coletivo que carrega um sonho e uma vontade: mostrar a favela como ela, além das visões estigmatizadas, e lutar para transformar essa realidade tão difícil. “O Programa tem um nome forte e é bastante conhecido. O meu desejo é que o Imagens do Povo cada vez mais colabore nas lutas por uma realidade mais solidária e justa, pois tem uma grande importância na luta pela construção de meios de comunicação que respeitem as diversidades existentes no Brasil e no mundo”, conta Monara Barreto.
Esta iniciativa pioneira de um fotógrafo visionário está transformando as perspectivas profissionais dos moradores de comunidades. Cada foto tirada por um fotógrafo da Escola Popular da Maré traz consigo um viés crítico e, sobretudo, a vontade de mostrar para o mundo que a que favela não é lugar só de violência e tráfico de drogas, também é espaço de produção cultural e reflexão social.

Por trás da reportagem

Quando contei à minha mãe que iria fazer um ensaio fotográfico na favela da Maré a sua primeira reação foi rir. Às gargalhadas, ela exclamou: “Ficou maluca?! De jeito nenhum! Você não vai entrar lá sozinha. E se te pegam e somem com você?” Dei à minha mãe 15 dias para que absorvesse a ideia. Claro que não foi fácil, precisei reunir argumentos, guardar recortes de jornal que noticiavam paz na região e, principalmente, comprovar que eu tinha contatos dentro da comunidade que garantiriam minha segurança.

Por fim, ela concordou em me levar até a passarela nove da Avenida Brasil, numa ensolarada manhã de sábado, certa de que lá haveria estaria um representante da Escola de Fotógrafos Populares à minha espera. Com coração na mão, ela se despediu. Saltei do carro e fui à procura do meu guia. Olhei por todos os cantos e nada. Liguei e deu caixa postal.

Ah, se minha mãe soubesse que eu entrei na Maré sozinha e sem conhecer ninguém! Tudo o que eu tinha eram um nome e um endereço rabiscados num papel. “Dudu do Observatório de Favelas – Rua Teixeira Ribeiro, 535”. Nem foi tão difícil. Encontrei o portão e fui entrando. Perguntei pelo tal Dudu, que me recebeu com um sorriso e foi logo me apresentando os professores, Fábio Caffé e Rovena Rosa. Em questão de minutos eu deixava de ser a “forasteira” e passava a ser mais uma entre muitos alunos.

Rapidamente pude perceber que no Observatório de Favelas é assim, todos, independente de onde vieram, são sempre muito bem-vindos. Simpatia, amizade, responsabilidade, vontade de aprender e de transformar. Essas são as boas vibrações que eu levo da Maré. Eu aprendi que para enxergar a realidade, preciso sair do meu mundinho. 

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